NUM PÉ E NOUTRO
Eu tinha uns sete anos de idade. Era um cedo da manhã como as demais. Então, minha mãe me disse: “tu vai na barraca de Mundico compra um açúcar - vai num pé e volta no outro”. E emendou: “vou cuspir aqui no chão”. Eu, que já conhecia a lei e os deveres de casa, diante daquele decreto, toquei-me pelo caminho deserto. A barraca (o comércio) do Tio Mundico – mestre das minhas primeiras letras – ficava aos fundos de sua casa, dentro de casa. Inacessível. A gente fazia o pedido da mercadoria e só uns dez minutos depois o produto chegava embrulhado. Era assim.
Naquela manhã, fui chegando e pedindo “um quarto de quilo de açúcar”, certo de que deveria cumprir a norma “vai num pé e volta no outro”, pois sabia que mamãe havia dito que iria cuspir ao chão. Era “tempo de São João”. E no comércio de Tio Mundico, vendiam-se bombas, esses “track’s” que antigamente costumava-se explodir nos terreiros de festas juninas. Um folguedo de criança, por vezes com gente grande pelo meio, só isso. Logo ali fiquei sabendo que poderia reduzir no peso do açúcar e completar a diferença com um “mercado” de bombas. Seis bombas! Acho que enlouqueci. Que maravilha! Poderia ali mesmo fazer explodir seis bombas! Que grande feito para a minha fantasia de criança naquele mundo de água do pote e serviços de sol a sol. E logo pensei: estou feito na vida! Vou mandar para os ares seis bombas!!! Nesse desvario esqueci de que estava numa missão de “vai num pé e volta no outro”, como esqueci também do sobreaviso: “vou cuspir no chão...”.
É como se dizia por ali: “... atentação do cão”. Foi o que aconteceu! Instantes depois, meia dúzia de bombas... ali... todinhas... na minha mão, só minhas! E eu, extasiado, deslumbrado, realizando uma fantasia de moleque, e lá se vão seis bombas seguidas, explodindo pelos ares. Estava, enfim, realizando um sonho, uma fantasia de moleque. Estouradas as bombas, a ficha caiu, lembrei-me que mamãe havia dado o sobreaviso “vou cuspir no chão”. E logo-logo aquele açúcar pouco já estava nas mãos e logo logo “rastei” de volta no caminho de casa.
Açúcar pouco e agora menos ainda, denunciando a falcatrua e eu ali, desconfiado e lendo o pensamento de mamãe. O meu pai, que era um cara que cedo psicografava o pensamento alheio, logo matou a charada: “tem boi na linha”, disse ele. “Daqui a pouco eu vou no Mundico tirar a prova dos nove”. Pronto! Eu já sabia que a casa tinha caído e o meu mundo também. Sabia que a taca tinha serviço, ia trabalhar. Não deu outra! Sabe aquela taca explicada? Justificada? Comentada? Apanha para não fazer mais isso; apanha para saber que isso está errado; apanha para cumprir ordem de pai e mãe. Apanha por isso e por aquilo... São esses os CAMINHOS POR ONDE ANDEI.
EM TEMPO DE “SANTO REIS”
Havia um dito popular segundo o qual “cada terra com seu uso, cada povo com seu fuso”. São, pois, esses “uso” e “fuso” que fazem a tradição, os costumes, a cultura de um povo. Costumes esses que por vezes atravessam-se em múltiplas gerações, outros que se perdem pelo tempo. Arrisco lembrar que era de 01 a 06 de janeiro a Festa de Reis que havia naquele meu lugar. Havia. Hoje não tem mais. Lembro-me que havia um “batuque de caixa”, gente vestida em cores, outros vestido a rigor, característico, e muita comida em “banquetes”, como se dizia. Lá no meu chão feito ao suor do facão, festa que não tem muita comida não é festa. Não presta. Era assim no meu lugar.
Hoje nesse particular não sei como está. Só sei que está tudo geneticamente modificado. Afinal tem “Associação”, tem Sindicato, motocicleta girando e luz elétrica e parabólicas pelos caminhos e povoados. Tem gente com um aposento, como dois aposentos e ainda assim com uma ponta da lavoura. E se antes a penúria tomava conta de tudo aquilo ali, hoje se vê fartura porque o dinheiro das aposentadorias rurais correm de mão em mão - na compra da farinha, do arroz, do peixe e da carne, nas mãos do trabalhador em diária de serviço.
Voltemos então aos velhos tempos, aos tempos das FESTAS DE REIS. Um dos grandes pontos desse festejo era a distribuição dos REIS. E o que era isso? REIS – do ponto de vista material – era de um papel crepom, em cores, artisticamente recortado, de formato quadrangular ou circular. Por sua vez, artisticamente dobrado, resultando numa final formação triangular. Esse mesmo crepom que enfeitava o terreiro e o andor, conforme as posses do “mandante” – o dono da festa. Os Reis (em papel) traziam ao centro versos que traduziam mensagens humildes, simplistas – atravessadas nas letras, na ortografia, na gramática. E corriam de mão em mão. E multiplicavam-se por aí. Uma só pessoa poderia fazer (em recortes de papel) quantos reis quisesse. E um mesmo reis poderia ser repassado para incontáveis mãos. E assim transitavam os reis naquela primeira semana do ano-novo, fazendo a interação social, a comunicação, os costumes daquele meu lugar.
O ato de DAR OU RECEBER UM REIS implicava numa escolha, estima, numa amizade. Receber um reis era um privilégio que impunha respeito, simpatia, consideração. Por vezes, era a sugestão para tornarem compadre ou comadre. Os reis, conforme a mensagem, pediam prendas, agrados, presentes. Outros indicavam simpatia pessoal, sugeriam envolvimentos, namoro. Neste caso, espécie de “mala direta”, tinham caminho curto, só até a destinatária, num tempo que a mulher não se atrevia a oferecer-se ao homem. Os REIS (em papel recortado) eram valorizados e cultuados durante seis dias de circulação válida. Terminado o período, o reis não valia mais nada.
Hoje não. Hoje não tem mais “festa de batuque”, não tem mais festa de reis. Não tem mais versos. Não tem mais essa diversão, essa rota de interação e comunicação; não tem mais lamparina nem aquela escuridão. Está tudo geneticamente modificado, naquele meu chão. Os tempos mudaram. “Eu fiz este reis / com lápis e papel / Eu amo você / como amo Deus no céu”. Outro: “Minha mãe me disse um dia / que muita sorte eu tinha / Então eu chamo você / Para ser minha madrinha”.
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Viegas é advogado e questiona o social – email: viegas.adv@ig.com.br
Jornal O Progresso, Seção: Opinião
*Fonte: www.oprogresso-ma.com.br
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